quarta-feira, 1 de junho de 2011

A invasao da Russia

Choque de armas


É provável que a História venha a considerar o dia 27 de junho de 1941 como a data apocalíptica do calendário militar. Nenhum plano bélico do vulto da “Operação Barbarossa” havia sido até então executado, inclusive pela inexistência de técnica de organização, de transporte e de comunicações para aplicação em tão grande escala.

“Quando a ‘Operação Barbarossa’ for desfechada”, proclamou Hitler, “o mundo prenderá a respiração!”.

Mas tal não aconteceu, porque “o mundo” não estava interessado em questões muito afastadas dos círculos pessoais e quase domésticos. Os primeiros avanços da “Barbarossa” constituíram-se no maior espetáculo militar desde os acontecimentos de agosto de 1914, e a Europa Ocidental e os Estados Unidos observaram-nos com o tranqüilo desinteresse demonstrado pelo gado à passagem de um trem expresso. Mesmo aqueles que tinham por profissão a análise dos grandes eventos estavam mais interessados em calcular o grau de atrito a que o poderio alemão seria submetido antes do colapso inevitável da resistência russa, e, à medida que as pontas-de-lança blindadas alemães penetravam profundamente na Rússia, a impressão que deixava era de que a bazófia de Hitler, que a conquistaria antes do Natal, não era infundada.

“Basta arrombarmos a porta da frente”, dissera ele aos seus generais, “e toda a estrutura podre ruirá!”. Com o passar dos dias as linhas pretas estendendo-se cada vez mais para leste, nos mapas, o único exagero da declaração parecia residir no cálculo do esforço necessário contra “a porta da frente”. Além disso, não ocorria a dúvida que sempre surgira, no passado, no espírito dos militares quando diante de avanços tão rápidos. Parecia que ali não estavam ocorrendo recuos táticos, na tentativa de carregar o agressor para o fundo da armadilha - pois os exércitos russos vinham sendo enredados e aniquilados, e dentro das varreduras amplas das colunas blindadas estava o solo encharcado de sangue russo. Dezessete dias depois da primeira arremetida, 30.000 prisioneiros, 2.500 tanques, 1.400 caminhões e 250 aviões russos haviam sido capturados só na frente do Grupo de Exércitos Centro, enquanto que o serviço de reconhecimento informava que centenas de aviões russos haviam sido destruídos em terra.

Portanto, quando o Grupo de Exércitos Centro parou no Desna, no Ocidente como que morreram as esperanças quanto ao final do espetáculo, pois sensatamente era de crer que o poderio armado da Rússia estivesse virtualmente esmagado, e que os alemães estavam empenhados em trabalho de limpeza, reforçando tropas cansadas mas triunfantes, e preparando-se para a última e definitiva arremetida contra Moscou.

Os soldados alemães não viam as coisas assim, mas ao mesmo tempo não tinham que se preocupar muito com a situação. Era verdade que Ivã estava montando efetivos imediatamente à frente e já provara ser um combatente inflexível; não havia dúvida de que a luta difícil os aguardava - mas a vitória era tanto mais saborosa quanto mais duramente conquistada e, de qualquer modo, ela era coisa certa. Mais uma quinzena e o avanço recomeçaria com soldados descansados, depósitos reabastecidos e veículos substituídos - posto que haviam sido seriamente castigada, nas estradas difíceis, e muitas vezes quase inexistentes, da Rússia.

Mas o sucesso também traz problemas e, como John Keegan observa em sua brilhante análise do dilema com que Hitler se confrontava, no nível do Alto-Comando havia indecisão. O Fuhrer chegou mesmo a declarar-se nua encruzilhada difícil, no momento de decidir se visaria ao norte ou ao sul, depois de penetrar a chamada “Linha Stalin”.

Para espanto dos homens que estavam no Desna, eles viram-se privados do seu grande motivo de orgulho, e do seu escudo, o Grupo Panzer de Guderian, que, com fúria mal contida, e teve que se dirigir, em virtude de ordem recebida, para sudoeste, de volta a Kiev, enquanto que o 1o Grupo Panzer era mandado para o norte. E tinha início outra grande série de cercos, desta vez resultando em número muito maior de prisioneiros e despojos russos e numa vitória que, em termos de baixas, se constituía na maior catástrofe da história russa, e na maior realização isolada das armas alemães.

Mas perdera-se algo. Perdera-se tempo.




O Exército Vermelho


Quaisquer que fossem os motivos de Hitler para atacar a Rússia em junho de 1941, um era predominante: a certeza de que seria muito fácil a tarefa que teria de enfrentar. “Basta arrombarmos a porta da frente”, afirmava ele a Rundstedt, “e toda a estrutura podre ruirá!”

O que o teria levado a fazer uma estimativa tão errônea do seu adversário, que já era o maior poderio terrestre do mundo, como ele bem o sabia, pelas informações de seu serviço de inteligência sobre o número de soldados e a quantidade de armas que possuía? É verdade que em seus discursos e escritos ele salientava sempre a inferioridade natural dos eslavos em relação aos teutos, mas esses pensamentos destinavam-se exclusivamente ao consumo público. Hitler jamais permitiu que se contestasse qualquer julgamento que fizesse sobre questões de real importância. Poderia ele ter-se deixado influenciar pelas lembranças que tinha do desempenho do exército russo durante a Primeira Guerra Mundial, período importante da formação da vida de Hitler, quando todas as grandes vitórias da Alemanha haviam sido conquistadas na Frente Oriental, e a maior destas, que o mundo ocidental praticamente esquecera, tinha ocasionado a derrota da Rússia e a rendição das suas províncias mais ricas? Talvez sim; mas, por mais lamentável que a arte militar tzarista se tivesse revelado no começo daquela guerra, e apesar do espírito derrotista dos exércitos do Governo Provisório Russo, no fim do conflito, esses mesmos exércitos chegaram a atingir índices elevados em matéria de realização militar, tanto no ataque quanto na defesa, quando o soldado russo tradicionalmente mostrava o melhor de si. Além disso, Hitler conhecia suficientemente a História para saber que a Rússia conquistara o respeito de toda a potência européia com que havia lutado, e o Fuhrer era bastante realista para aceitar o fato de que os elementos militares russos - “volume de tropa, espaço, terra calcinada, “janeiro e fevereiro” aos quais se deveriam acrescentar também a bravura e a abnegação dos seus soldados - eram inerentes ao país e ao povo, independente do regime vigente. A longo prazo, esses elementos estavam fadados a se fazerem sentir.

Mas Hitler não pretendia que houvesse nenhum “a longo prazo”, tão convencido estava de que a guerra seria breve, em parte pela velocidade e poder de penetração de suas forças Panzer, em parte pelas vantagens que seus generais saberiam tirara dos erros que os russos cometeriam na direção das suas formações. Ele acreditava na anulação total da bravura demonstrada pelo soldado russo pelos erros de julgamento que o Alto-Comando soviético fatalmente haveria de cometer. O recente desempenho do Exército Vermelho na Finlândia, desempenho absurdamente fraco, mostrara que seu Alto-Comando estava sujeito a esses erros devido à natureza da estrutura de comando.

O Conde von Schlieffen, que traçara os planos alemães para a guerra de 1914, baseara seus cálculos na reputação de ineficiência do Estado-Maior-Geral russo. Isto levava Schlieffen a planejar um golpe decisivo contra os franceses enquanto se poderia esperar que os russos, seus aliados, ainda estariam nos estágios preliminares da mobilização.

Hitler, porém, não levou em conta coisa alguma do que estabelecia o antigo plano. Considerou, antes, uma falha fatal que admitia existir no Comando Militar Soviético, introduzida pelos líderes bolchevistas e ampliada por Stalin através de expurgo que fez realizar no exército em 1937-38.

Quanto a isto, Hitler, sem dúvida, tinha certa razão. A pergunta “Quem é que manda?” permanece não respondida entre o exército e o governo, até mesmo nos estados mais antigos; nos mais recentes, ela sugere sempre disputa, freqüentemente violenta, sobretudo nos estados de origem revolucionária. Se tal não acontecer na Rússia Soviética - um estado revolucionário que só foi salvo da extinção, provocada pela contra-revolução e pela invasão estrangeira, graças aos esforços do incipiente Exército Vermelho na Guerra Civil - é porque os líderes bolchevistas, desde os primeiros momentos da sua existência, tomaram o cuidado de encostar em cada oficial do Exército Vermelho (embora a palavra “oficial” não fosse usada, por ter sido proibida) um comissário ou assistente político para observar suas ações.

De acordo com este sistema, o comissário tinha sempre precedência sobre o soldado na área das decisões políticas, e teoricamente tinham ambos o mesmo poder de decisão na esfera dos assuntos militares. Para formar a oficialidade do Exército Vermelho, que de um punhado de “guardas revolucionários” de confiança passou a vários milhões em pouquíssimo tempo, a liderança bolchevista valeu-se dos serviços dos ex-oficiais tzaristas de formação e treinamento exatamente iguais aos daqueles que comandam os Exércitos Brancos, com os quais estavam em guerra. Essa dependência dos oficiais tzaristas continuaria até bem dentro da década de 1920, e mesmo depois que números suficientes de jovens comunistas ingressaram no exército, saídos das novas academias, ainda havia necessidade de ex-tzaristas nas fileiras superiores. Já então muitos tinham demonstrado, aparentemente para satisfação geral da liderança, lealdade para com a revolução e para com o estado comunista, entre eles Tukhachevsky, ex-oficial da Guarda do Tzar, que atingira, aos 25 anos, o comando de um dos exércitos bolchevistas, na Guerra Civil. Depois da Guerra Civil, os bolchevistas, não mais precisavam dos ex-oficiais tzaristas, que começaram a ser demitidos, mas Tukhachevsky, que dirigira o avanço sobre Varsóvia, em 1920, e esmagara o levante naval em Kronstadt, em 1921, já estava no caminho que o levaria ao comando-supremo do Exército Vermelho, na década seguinte.

Apesar da conversão de oficiais, como Tukhachevsky, à nova ideologia, e apesar da hostilidade de alguns comandantes completamente “vermelhos” ao sistema de comissariado, foi este o procedimento que o partido conservou durante toda a década de 1920 e até começos de 1930. Todavia, embora insistisse na necessidade da manutenção dos comissários, o partido pouco fazia no sentido de selecionar os elementos que se candidatavam ao cargo ou de educar os que já estavam em função. Como resultado, o comissário era em geral um funcionário honesto mas desqualificado para o exercício do cargo e em relação aos quais os líderes vermelhos mais enérgicos não revelavam muita tolerância.

O oficial soviético, por outro lado, sob a inspiração de Tukhachevsky e seus assistentes, foi gradativamente superando o comissário nas aptidões profissionais. Havia cooperação secreta com o exército alemão, cooperação que os germânicos acolhiam por precisarem realizar nas áreas russas o treinamento e as experiências com equipamento bélico proibido pelo “Tratado de Versalhes”; os russos, por sua vez, viam nessa cooperação a oportunidade de se adestrarem nas novas técnicas militares. Isto ajudou a fazer do Exército Vermelho, por volta do começo da década de 1930, um dos mais modernos do mundo. Ele começara a fazer experiências com desembarques aéreos de grandes unidades, tanto por aviões como por meio de pára-quedas, e a manobrar grandes formações de tanques, que eram essencialmente desenvolvimentos dos famosos protótipos Christie que a Rússia comprara ao projetista americano em 1931.

Esta profissionalização do Exército Vermelho recebeu o selo da aprovação partidária em março de 1934, quando finalmente o princípio do controle duplo foi abolido, limitando-se a atuação do comissário aos conselhos de educação política. No ano seguinte, os títulos formais de postos militares (durante a revolução substituídos por eufemismos como “especialistas de comando”) foram reintroduzidos, incluindo a nova distinção de marechal, à qual os cinco mais importantes líderes soviéticos foram promovidos. Estes eram Tukhachevsky; Voroshilov, Comissário da Defesa, veterano agitador político, ex-membro do 1o Exército de Cavalaria Vermelho e associado íntimo de Stalin; Yegorov, Chefe do Estado-Maior e ex-membro do 1o Exército de Cavalaria; Budenny, ex-suboficial tzarista promovido a general de cavalaria (também ex-membro do 1o Exército de Cavalaria); Clucher, outro ex-sargento Tzarista, herói da guerra civil, ex-consultor militar de Chiang-Kai-shek e comandante do semi-autônomo exército da Sibéria.

A crescente profissionalização do exército se fez acompanhar de profundas modificações que o transformaram numa corporação totalmente ativa. Até então, a infantaria do Exército Vermelho pertencera na maioria às formações da Milícia de Cidadãos, sediadas numa área urbana e cujos soldados só esporadicamente treinavam. As alterações introduzidas previam também o serviço obrigatório do conscrito, realizado de uma só vez, nas unidades formadas para o serviço realmente ativo, ao mesmo tempo que Stalin decretava a liberação de verba destinada ao adestramento de grandes massas de cidadãos civis em pontaria, saltos de pára-quedas (não de aviões, mas de arneses especiais ligados a elevadas torres) e na defesa civil.

Coincidia o aumento do contingente permanente do Exército Vermelho com as idéias que Tukhachevsky e dos generais soviéticos de mentalidade idêntica. Mas seu efeito foi menos eficaz na prática do que na teoria, pois ele introduziu no exército muitos camponeses descontentes com a coletivização da agricultura, iniciada em 1931, que demonstraram empenho muito pequeno durante o treinamento militar. Alguns oficiais graduados ficaram tão alarmados com a transformação do exército, por causa do comportamento das unidades conscritas, que começaram a surgir pedidos de modificação no programa. Na Sibéria, o Marechal Blucher conseguiu obter concessões, não estendidas, porém, ao resto do país.

Aliás, como teria Stalin concordado com isso, quando apenas havia acabado de completar o expurgo do partido e na NKVD (a Polícia Secreta)? Embora estivesse firmemente controlados estes dois órgãos, havia um terceiro, de igual importância, com possibilidade de o derrubar, se seus líderes assim o desejassem, o exército. Voroshilov, que ocupara o posto de Comissário da Guerra desde 1925, parecia ser leal, mas também era, profissionalmente, o de menor influência dos cinco marechais, e provavelmente era quem tinha o menor apoio, correspondente à sua posição, do corpo regular de oficiais. O restante, e o grosso das fileiras superiores do Exército Vermelho, pessoalmente nada deviam a Stalin Já de haviam iniciado na carreira das armas antes que estes subissem ao poder e sua promoção dependera mais dos próprios esforços ou da estima dos colegas do que da intervenção do partido ou de favores do ditador. Agora que estava excitado pela atmosfera gerada pelo expurgo do partido, acreditando um pouco nos perigos que ele próprio inventara, ou talvez embriagado pelo prazer de derramar sangue, não surpreende que Stalin estivesse decidido a não parar até que todos os seus inimigos, reais, potenciais ou imaginários, tivessem recebido uma bala na nuca.

Também é possível que Stalin tivesse conseguido provas da existência de uma conspiração contra seu domínio pessoal, sendo quase certo que a Gestapo tenha apresentado um dossiê falso, sugerindo que Tukhachevsky estava trocando informações secretas com o Estado-Maior-Geral alemão. Esses boatos permanecem incomprovados. Não obstante, Tukhachevsky se havia comportado insensatamente durante o expurgo do partido, sobretudo no decorrer de uma viagem que fizera à França - um deleite sem paralelo para um oficial soviético - e, o que era mais agourento, também fora acusado por um réu, durante um dos falsos julgamentos partidários, de ter estado em contato com Trotsky, já exilado. Seja qual for a verdade disso, ou de quaisquer alegações feitas contra ele ou qualquer outro oficial, Tukhachevsky foi um dos primeiros a serem presos e mortos. Ele e mais sete generais foram julgados e fuzilados nos dias 11 e 12 de junho de 1937.

Este episódio, pequeno mas brutal, instituiu e caracterizou o holocausto que se seguiria. Por volta do outono de 1938, como resultado de execuções sumárias e de aparatosos julgamentos falsos, o Exército Vermelho perdera quase metade dos seus oficiais: três dos seus cinco marechais; 13 dos 15 comandantes do exército; 57 dos 85 comandantes de corpo; 110 dos 195 comandantes-de-divisão e 220 dos 406 comandantes-de-brigada. Nos escalões inferiores, calcula-se que os golpes foram ainda mais pesados, embora de coronel a capitão as penas fossem quase sempre de prisão. No Alto-Comando, porém, político e militar, a morte era sentença quase certa. Os Subcomissários da Defesa, em número de 11, foram fuzilados, bem como 75 dos 80 membros do Soviete Militar, criado em 1934; todos os Comandantes Militares de Distrito e a maioria dos seus Chefes de Administração Política (isto é, comissários graduados).

O método adotado por Stalin na condução do expurgo deixou em todos a impressão de enorme confusão. Se, por um lado, eliminou muitos ex-oficiais tzaristas e comandantes revolucionários com larga folha de serviço prestados à revolução vermelha, por outro lado conservou em seus postos famosos ex-oficiais do regime deposto. Shaposhnikov, que estudara na Imperial Escola do Estado-maior-Geral e perdera as graças de Stalin em 1937, em substituição a Yegorov, de origem camponesa, e conseguiu manter-se no cargo durante vários anos, só se demitindo em virtude de problemas de saúde. Também os comandantes militares não sofreram mais que os políticos, já que os comissários também foram executados em número talvez muito maior. Em tal conjuntura, o melhor modo de sobreviver parece que era a associação com os elementos do 1o Exército de Cavalaria da época da Guerra Civil, a força anticossaca que dera apoio político a Stalin e cujos métodos de operar restrições por parte de Tukhachevsky.

Foi este o 1o Exército de Cavalaria que, depois do expurgo, subiu ao poder, por intermédio de seus dirigentes: Budenny, Timoshenko, Kulik e Zhukov. Todos desfrutavam da proteção de Stalin. Se antes lhe deviam muito, agora lhe deviam tudo, inclusive a vida. É, porém, duvidoso que Stalin, em troca dessa simpatia, recebesse a proteção que esperava: em Timoshenko ele tinha um comandante capaz, se não inspirado; em Zhukov, um general talentoso mas muito moço, sem a vivência necessária ao pleno desenvolvimento do espírito; em Budenny, uma figura de soldado apenas decorativa, com idéias táticas muito superficiais e concepções estratégicas obsoleta e, em Kulik, um Chefe do Departamento de Material Bélico (sucessor de Tukhachevsky) muito confuso, que advogava a retirada de armas automáticas leves do exército (alegando que eram inadequadas para os soldados) e a suspensão da produção de canhões antitanques e antiaéreos. Ele também interpretara mal as provas recolhidas pelos observadores do Exército Vermelho durante a Guerra Civil Espanhola (na qual grande parte do equipamento russo fora experimentada) sobre o uso de blindados, decidindo, baseado nas suas conclusões, dissolver as grandes formações blindadas que Tukhachevsky estivera organizando, e redistribuindo os tanques em pequenas unidades, entre a infantaria. O efeito desses erros de cálculo e, de modo mais geral, das comoções que lhes tinham dado origem, só foram percebidos fora da Rússia em 1940, depois que Stalin insensatamente declarou guerra à Finlândia.

A origem da conseqüente derrota, altamente “embaraçosa”, foi o desejo de Stalin de assegurar a transferência ou o arrendamento de território finlandês adjacente aos acessos às suas bases navais no Báltico. A recusa da Finlândia em concedê-lo levou ao rompimento de relações diplomáticas e, a 30 de novembro de 1939, a um ataque total russo pelo Istmo da Carélia, o corredor terrestre que liga o sul da Finlândia à região de Leningrado. Embora desfechado com o apoio de considerável volume de tropa, ele foi repelido, assim como os ataques ao longo da fronteira terrestre russo-finlandesa, acima e abaixo do Círculo Ártico. Somente no começo de fevereiro de 1940, depois da concentração de reforços da ordem de quase um milhão de soldados, e de prolongado bombardeio das posições defendidas pelos finlandeses na “Linha Mannerheim”, é que o Exército Vermelho finalmente conseguiu penetrar, obrigando os finlandeses a pedir a paz um mês depois. Essa eventual recuperação do prestígio perdido deveu-se à liderança e à habilidade de comando de Timoshenko, muito superiores às do comandante original na frente finlandesa, o Marechal Voroshilov, que, daí por diante, retornou ao trabalho de natureza política, muito mais adequado ao seu temperamento.

O padrão e o resultado da guerra finlandesa, na qual, durante todo um inverno, uma nação de três milhões e meio de habitantes não só contivera, como também cercara o exército de uma nação de mais de cem milhões, ridicularizando seus líderes, pouco fizeram para realçar o prestígio militar soviético. Aliás, foi tão ardente o entusiasmo despertado no Ocidente pelo desafio finlandês aos russos, que a Grã-Bretanha e a França quase intervieram do lado da Finlândia. Tivessem esses países feito tal coisa, sem dúvida teriam lamentado o resultado final, mas o resultado imediato acentuaria a sensação de frustração dos russos.

Contudo, a prazo mais longo, as lições da campanha finlandesa, ainda que difíceis de engolir de uma vez só, mostraram-se de grande utilidade para os russos. Os observadores estrangeiros - Hitler principalmente - concluíram que, pelo desempenho medíocre dos russos, suas falhas - exatamente as mesmas apresentadas contra o exército alemão da Primeira Guerra Mundial, bem inferior ao da Segunda - eram irremediáveis e que, em qualquer campanha maior, os russos amargariam os mesmos reveses de Tannenberg e dos Lagos Masurianos, em 1914. Ineficiência, falta de previsão, confusão: estes eram os defeitos com os quais qualquer inimigo da Rússia poderia contar, segundo tudo levava a crer, com toda a segurança e que só eram redimidos pela bravura do soldado comum.

Contudo, a Rússia e seu exército não desperdiçaram a lição recebida na Finlândia, tanto que, assinado o armistício, muito esforço foi desenvolvido no sentido de repensar todo o plano militar. Outra campanha, a travada por Zhukov contra os japoneses intrusos na fronteira mongólica com a Sibéria, em maio de 1939, e que quase passou despercebida no Ocidente, oferecera provas muito diferentes do valor do Exército Vermelho. Timoshenko, que assumira o comando de fato em lugar de Voroshilov, providenciou para que aquilo que um pequeno destacamento do Exército Vermelho realizou num conflito localizado se tornasse o padrão dos operações do exército. A vitória de Zhukov implicava o uso de grande quantidade de blindados, indício de que Timoshenko havia feito reviver o corpo de blindados – formações de duas divisões de tanques e uma divisão motorizada – que Tukhachevsky organizara antes de sua queda. Sob a influência desses acontecimentos e do novo comando, duas coisas de grande significação militar aconteceram: autonomia para os comandantes das forças armadas na tomada de decisões em assunto de natureza militar e a colocação dos comissários, pela segunda vez, como consultores políticos, apenas. Ao mesmo tempo, muitos dos oficiais aprisionados ou banidos durante o grande expurgo militar foram reintegrados e se emitiram novos regulamentos de treinamento, baseados na experiência da Guerra da Finlândia e nos relatórios das operações alemãs na Polônia e na França.

Não seria possível consertar tudo no pouco tempo disponível, como ficaria provado. O expurgo desfechara um golpe quase mortal na autoconfiança  do corpo de oficiais, coletiva e individualmente, tornando improvável a oficialidade de categoria média ou abaixo da média – por definição, a maioria – arriscar uma linha de ação independente quando em contato com o inimigo (aliás, a obediência extremamente rígida às ordens era uma das principais deficiências russas). Por outro lado, a propaganda partidária, apesar das humilhações da Guerra Finlandesa, fez que se desenvolvesse no soldado russo a impressão sem dúvida falsa de que o Exército Vermelho era imbatível, e que merecia por parte de todos a mesma confiança que depositavam na infalibilidade do julgamento do Politburo. Não obstante, até o verão de 1941, muita coisa se fez para restaurar o equilíbrio do Exército Vermelho e, independente do quanto estivesse por ser feito, só o seu tamanho e o volume do seu equipamento bastavam para fazer com que qualquer atacante em potencial parasse para pensar.

À parte a Osoaviahlim e as reservas treinadas, estas últimas produto do sistema de conscrição universal instituído em meados da década de 1930, o Exército Vermelho na primavera de 1941 tinha, em sua ordem de batalha, entre 230 e 240 divisões, a maioria das quais com efetivos completos; além disso, umas 170 estavam dentro do alcance da fronteira ocidental. A maioria dessas era formada das chamadas Divisões de Fuzileiros (infantaria), de cerca de 14.000 homens, sem muitos transportes mesmo hipomóveis. Quanto às divisões de tanques, haveria pelo menos 22 e no máximo 60, cada qual formada de dois regimentos de tanques, um de infantaria transportada em caminhões e um regimento de artilharia. Havia pelo menos 13 divisões motorizadas, nas quais esta proporção entre tanques e infantaria era inversa. Estes dois tipos de divisão eram os equivalentes exatos das Divisões Panzer alemãs – e das que mais tarde seriam chamadas de divisões Panzergrenadier – embora os russos conseguissem manter os efetivos de tanques de seus regimentos blindados num nível muito superior ao dos alemães.

Contudo, grande parte, se não a maior, do poderio ofensivo e defensivo do Exército vermelho foi anulada pelo estranho plano de deslocamento que Stalin impusera às formações de campanha no começo do verão de 1941. Naturalmente, as fronteiras da Rússia  naquele ano, e naquela estação, eram diferentes das que teria tido de defender dois anos antes, pois, em quase toda parte, elas estavam bem mais para oeste do que a linha de 1939. A anexação dos estados Bálticos – Lituânia, Letônia e Estônia – tinha trazido a fronteira russa até a fronteira norte da Prússia Oriental; a divisão da Polônia com a Alemanha avançara o setor central da fronteira quase até Varsóvia e no sul, a anexação da Bessarábia arrancada à Romênia em 1940, havia levado as tropas russas para a outra margem do Dniester até o Pruth. Por mais que a aquisição de todo esse território pudesse agradar a Stalin, não facilitava em nada as tarefas estratégicas dos seus generais, pois as novas fronteiras significavam que as antigas defesas de fronteiras haviam perdido qualquer sentido e passaram a situar-se, em certos lugares, a centena de quilômetros atrás da futura zona militar de operações.

Uma fronteira aberta, sem poderosas defesas e sem obstáculos naturais – rios largos, grandes lagos ou altas montanhas – exigem defesa em profundidade por forças equipadas e treinadas para travar guerra móvel. Grandes reservas, localizadas em pontos-chaves na rede de batalha, são um requisito para qualquer defesa bem sucedida; sem tais forças ao seu alcance, o comandante de fronteira aberta não se livra do pesadelo de uma penetração irresistível.

E Stalin condenou seus comandantes a viver debaixo desse pesadelo durante toda a primeira metade de 1941, pois, em lugar de destinar parte de suas forças para formar uma reserva estratégica, ele insistiu para que fossem todas deslocadas para postos avançados; não lhe sendo possível reconhecer que a conformação da fronteira russa, com suas muitas saliências e reentrâncias, tornava antieconômica a defesa de cada quilômetro, ele insistiu na guarnição de toda a sua extensão; e em lugar de reconhecer que certos trechos da fronteira necessitavam de menos defesa do que outros, como, por exemplo, a parte imediatamente a oeste dos impenetráveis pântanos do Pripet, ele espalhou suas divisões por pontos quase que eqüidistantes entre si de norte a sul, entre o Báltico e o Mar Negro.

Resta apenas indagar dos motivos que levaram Stalin a expor seu exército a perigo tão óbvio. Tem-se dito que seus motivos eram “formados de complacência, confiança e de uma espécie de nervosa precaução”: complacência alimentada pela propaganda por ele mesmo estimulada sobre a invencibilidade do Exército Vermelho; confiança de que a guerra poderia ser evitada, e nervosa precaução, denunciada no poderoso anteparo de soldados que fez colocar bem à frente, para que a reunião de tropas das Rússias central e oriental, atrás desse anteparo, pudesse ser feita despercebidamente. A esta lista de motivos poderíamos acrescentar a “realização de desejo”. Stalin não queria a guerra; fez ouvidos moucos às advertências sobre os perigos da guerra feitas pelos seus amigos e prováveis amigos (Churchill entre eles); Stalin cumpriu à risca os acordos de remessa de alimentos e matérias-primas devidos à Alemanha e proibiu seus comandantes de realizarem qualquer tipo de preparativo militar, por vital que fosse à segurança do seu próprio setor da frente, desde que os alemães pudessem interpretar como ato de provocação ou agressão.

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